30.8.15

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Melhor do que por vezes viver é o langor de escolher não viver por uns tempos e deixarmo-nos amarrar aos relatos fabulosos que os livros nos dão. No Verão passado, bem educada fui nesse sentido por Albert Cossery, o Voltaire do Nilo, quando traguei em dois dias A Violência e o Escárnio (1964). Se nele se falava de como a tirania é desarmada pela política do escárnio, pelo desdém que o humor dardeja, longamente se debruçava também sobre a languidez e o aprendizado do torpor que levam a um exercício de reflexão profunda, tão profunda às vezes que resulta numa capacidade de abstracção de nós mesmos, alegremente recebida. Nada fazer, então: ser fumo pairando pelo ar dos dias, vagueando apenas os olhos por páginas riquíssimas com tamanhos legados, aos quais, por iniciativa própria e a sós, não poderíamos aceder e onde certas e determinadas obsessões, que já trazemos connosco e reconhecemos nesses livros, se podem espraiar livremente. 

Todos nós temos episódios da nossa vida de onde uma obsessão nasce. Nem sempre nos apercebemos da hora desse nascimento. Carregamo-las em inocência até qualquer coisa familiar a esse episódio as despertar, e que pode ser praticamente insignificante: mas haverá mesmo isso do insignificante? Em pequena, durante uma visita à serra de Laboreiro, deparamo-nos com um pastor levando as suas cabras pedregulhos afora, já que é terra de pastoreio. Uma das crias do rebanho tresmalha-se e aproxima-se de nós, dá um salto na minha direcção e agarro-a ao colo com uma felicidade súbita. Uma fotografia regista o momento. E é assim que nascem as obsessões, neste caso obsessão por um lugar, por uma paisagem, das mais ferozmente belas que me foi dada a ver. 

Tão feliz como quando o cabrito me saltou para os braços fiquei eu ontem quando me saltou para as mãos um livro que se passa precisamente em Castro Laboreiro, Serra Brava (1951), de Barros Ferreira, onde a paisagem assume um protagonismo quase antropomorfizado. A serra tem vida própria (e tem mesmo), influi nos acontecimentos e no carácter de tudo e de todos que a habitam, sendo todos feitos à sua semelhança, como o carácter de João da Ribeira (que viverá com uma desembaraçada pastora, Maria dos Tojos, uma história de amor que, por paixão, o obriga a confrontar-se cruelmente com os seus limites éticos num meio onde a honra vale mais do que a vida): «homem endurecido pela luta contra um meio hostil, mas acima de tudo leal. Tinha os tojos da serra na alma, mas os espinhos só eram agressivos para os que tentavam pisá-lo. Sentia a dureza da urze no coração, mas apenas para resistir à estiagem brutal da desgraça. Cópia humana e fiel da rudeza da terra em que nascera, só conhecia as transições bruscas, como a das nevadas letárgicas das longas invernias para a inclemência das estiagens dos verões caniculares, que tudo secavam. Em tais almas a ternura é um acidente de curta duração. Mas da rudeza à crueldade havia um grande passo». 

E assim me perco nessa música de chocalhos e plantas ao vento, nessa paisagem violenta, uma grande necrópole de rochedos e penhascos, disputando o tamanho do céu, misturando as páginas do livro às memórias dos vários anos em que visitei essa serra e lhe subia às árvores à gargalhada. Talvez nunca tenhamos saído daí, dessa posição que não se sabe privilegiada: quando somos tão naturais e simples é quando tudo é alcançável sem que para isso se faça nada. Ser como a pedra é. Ser e basta.

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